segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Impossível é aquilo que não se tenta



Dia 3 de dezembro de 2006. Marcos (foto), 24 anos, levantou cedo, deu comida aos seus cachorros, varreu o quintal, tomou café, deu uma orgulhosa olhadinha básica no seu Fiat Uno, que comprou há uma semana. Primeiro dia de férias do trabalho na empresa M.Dias Branco, da qual é vendedor, e também de confraternização, pelo fim do ano letivo, com colegas da Faculdade UVA onde estuda Marketing. E lá foi ele, acompanhado da namorada, Rafaela, grávida de seis meses do primeiro filho dos dois, e da irmã mais velha Cidinha, portadora de Síndrome de Down que, na sua ingenuidade, adora passear. Até ali, o dia foi de muita alegria.

Por volta das 16h30, encerrada a confraternização, que aconteceu num sítio, da área rural de Olinda, ali mesmo em Ouro Preto, onde mora a família, Marquinhos leva Rafaela e Cidinha em casa. Depois, retorna ao local para dar uma carona a quatro amigas que estão sem carro. Elas moram em Casa Amarela. No caminho, recebe ligação de um dos amigos que havia saído antes. Convidava-o para tomar uma “saideira”, junto com outros colegas da faculdade, no bar Rei do Jabá, que fica na Mangabeira, caminho onde obrigatoriamente teria de passar. Ele parou e mais ou menos 20 minutos depois toda a sua vida mudou, ou melhor, quase acabou.

O grupo sofreu uma tentativa de assalto, na calçada onde funciona o bar. Ninguém reagiu, somente uma das moças correu em busca de auxílio e Marcos foi baleado na cabeça, altura do ouvido direito. O projétil alojou-se nas duas primeiras vértebras da coluna cervical e ele chegou ao Hospital da Restauração com pressão arterial zero. Foi ressuscitado e na madrugada do dia 4 transferido para a UTI do Hospital Português, sem nenhuma esperança de sobreviver. Se por acaso isso acontecesse, os prognósticos eram de que ficaria tetraplégico e dependente de respirador artificial. O que se confirmou.

Longos meses de sofrimentos, lágrimas, tristezas, esperanças da família e dos amigos. Entretanto, as palavras dos médicos eram desanimadoras. A única condição de ele sair do respirador artificial e da UTI seria submeter-se a uma cirurgia para implantar um marcapasso diafragmático. O equipamento custa uma pequena fortuna e, mesmo assim, não havia médico especialista para realizar o procedimento. Na opinião da médica que o acompanhava, “não seria possível a realização da cirurgia, primeiro porque a família não tem posses, depois por não ter médico para fazê-la”. O sonho era literalmente, na opinião dela, impossível.

Pesquisas na internet resultaram na localização de um neurocirurgião paulista que havia realizado algumas cirurgias experimentais, em 1992. Contatado, dispôs-se a operar Marcos, não sem antes prevenir dos efeitos colaterais, dos altos custos e da necessidade de transportá-lo para São Paulo, em UTI aérea. O risco era justificável. Injustiça seria deixá-lo confinado ao leito de UTI enquanto sobrevivesse, sofrendo toda sorte de riscos de infecções e complicações, que fatalmente o levariam a morte, depois de sobreviver por milagre. Ter enfrentado uma primeira cirurgia para fixação da cabeça, durante sete horas.

Uma luz no fim do túnel: um especialista nos Estados Unidos, como alguns outros conterrâneos, utilizando técnica diferente do médico brasileiro, realiza o procedimento com total êxito já há alguns anos. Mas, e o dinheiro para bancar todos os custos de onde viria?

A família recorre ao ministro da saúde, que encaminha o apelo ao SUS, que por sua vez reencaminha para a Secretaria Estadual de Saúde, que nega o tratamento cirúrgico alegando que o custo-benefício não justificava gastar uma quantia tão elevada. A vida de Marcos não valia nada para os burocratas, que se valeram até de um falso laudo para eximir-se da responsabilidade.

O assaltante, um desocupado, perverso, não conseguiu levar os celulares que estavam em cima da mesa do bar. Ele aguardava em liberdade julgamento por homicídio qualificado, desde 1999. A agressão deu-se na via pública. Pela vida de Marcos, a única saída da família seria buscar a Justiça, acionando o Estado pela falta de segurança pública, dever constitucional. Aí começa a via-crúcis.

Especialista em Responsabilidade Civil, professora da disciplina e advogada, Luciana Browne sensibilizou-se com a história de Marcos e resolveu assumir a causa sem cobrar honorários. Durante quatro meses, sob a orientação da professora, algumas de suas alunas do Curso de Direito formaram um grupo de estudos para pesquisar a doutrina e jurisprudência de casos semelhantes. A inicial da ação, juntamente com os anexos, resultou num calhamaço de mais de cem páginas, a que se deu entrada, no Tribunal de Justiça do Estado, em 18 de julho de 2006 e foi distribuída para a 3ª Vara da Fazenda Pública do Recife, com pedido de urgência, por se tratar de saúde, de um deficiente físico e o bem ameaçado ser a vida.

Infelizmente, quase um mês depois, em 15 de agosto, a juíza Clara Maria de Lima Callado, nega a antecipação de tutela pedida e a liminar que possibilitaria a Marcos submeter-se à cirurgia. O desespero tomou conta dos familiares e amigos, pois, traqueostomizado, ele já havia sofrido inúmeras infecções, paradas cardíacas e outras complicações próprias do quadro da tetraplegia. A divulgação pela imprensa deu notoriedade ao caso, reforçando uma campanha de arrecadação de fundos para a cirurgia, em andamento desde o mês de junho. Cds, rifas e bazares vinham sendo realizados com a ajuda de doações pela comunidade, mas insuficientes para atingir os cerca de 300 mil reais necessários. Só o marcapasso, importado, custa 100 mil dólares.

Inconformada com a decisão da juíza, Dra. Luciana entra com um agravo de instrumento, em segunda instância, pleiteando a reforma. O Estado afirma que não tem bola de cristal para adivinhar onde vão ocorrer eventos violentos, como assaltos, homicídios, latrocínios, etc. e que o paciente pode perfeitamente viver o resto da vida confinado num hospital, no respirador artificial, sem que isso represente risco de vida. Nega-se a custear o procedimento. Pura heresia!

A luta continua! A espera e a ansiedade acabam com os nervos de todos, mas tudo é recompensado quando, em 11 de outubro, o desembargador João Bosco Gouveia de Melo, da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), concedeu a liminar determinando que o Estado pague a cirurgia imediatamente, sob pena de multa diária de dois mil reais. A despeito de todos os apelos feitos ao governador Eduardo Campos, cuja caixa de email foi congestionada por milhares de mensagens, os procuradores do Estado, em 26 de outubro, quase vencendo o prazo, recorrem da liminar, entrando com um agravo regimental. Mais desespero, mais lágrimas, mais tristezas.

Finalmente, nesta segunda-feira, 12 de novembro , quase quatro meses depois, a família e amigos de Marcos puderam comemorar. O desembargador João Bosco, em decisão terminativa, resolve pelo não-seguimento do recurso do Estado, justificando : “ NEGO seguimento ao presente recurso porque manifestamente incabível, mantendo-se a decisão impugnada em todos os seus termos”.

Agora, não cabe mais qualquer recurso. A comemoração, a alegria chegou, enfim, ao coração de todos que vêm torcendo por Marcos, nestes onze meses de sofrimento. Que venha a cirurgia, que venha Marcos de volta à vida, a sua casa, aos seus amigos. Ele, que é órfão de pai e mãe, resiste bravamente, todo esse tempo, alimentado pela esperança na justiça divina, de poder criar e educar seu filhinho Gilberto Neto, hoje com 8 meses, como um homem de bem, na fé cristã, porque confia : Deus é fiel! Obrigada aos que estiveram ao nosso lado, incentivando, colaborando, dando o melhor de si. Obrigada aos que creram que Deus existe e que a vitória chegaria. A nossa resposta àquela médica e a todos que não acreditaram é só uma : impossível é aquilo que não se tentou.

Gercina Primo

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