terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O GAJOP faz história

Por Marcelo Santa Cruz


Realizar uma ação educativa capaz de elevar o nível de informação, consciência e autonomia das organizações do movimento popular, e oferecer assessoria jurídica na questão da posse da terra, nas favelas da Região Metropolitana do Recife. Estas eram as missões iniciais do Gajop, Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares, uma organização não governamental fundada em 1981 por um grupo de advogados e advogadas oriundos do Movimento de Anistia e identificados com a luta de resistência democrática. De lá para cá o Gajop fez história. E continua fazendo.

Na primeira metade dos anos 80, ao lado de outros setores da sociedade pernambucana, essa entidade participou intensamente da discussão pró o estabelecimento de uma política democrática do uso e ocupação do solo urbano que contemplasse vários aspectos da questão, como o institucional, o fiscal e o jurídico. O Gajop teve, por exemplo, participação destacada nos debates do Prezeis, Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social, cuja proposta de criação partiu da Pontifícia Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife, à época sob a direção pastoral de Dom Hélder Câmara. O Prezeis foi amplamente discutido, aprovado, e tornou concretas as aspirações populares de participação das entidades representativas dos moradores na elaboração e definição dos planos de urbanismo e regularização fundiárias, elaborados para as Zeis.

Em 1984 o Gajop passou a ocupar o mesmo espaço físico de outra entidade, sediada em Olinda, o Centro de Cultura Luiz Freire, também de reconhecida atuação no campo dos direitos humanos, em especial na educação para a cidadania. Essa parceria se manteve por quase dez anos, com bastante identidade de projetos e atuação conjunta em diversas atividades, até que os associados do Gajop entenderam que era chegado o momento de fortalecer a proposta institucional da organização, mostrar a sua cara, a sua personalidade, e decidiram se estabelecer novamente no Recife, em sede própria.

O afastamento da entidade da temática de habitação teve início em 1986, quando Miguel Arraes foi eleito pela segunda vez governador do estado de Pernambuco, representando o sentimento de mudança das forças progressistas. Vários técnicos envolvidos com as questões urbanas que militavam em organizações não governamentais, entre os quais alguns dos fundadores do Gajop, foram participar do governo com a perspectiva de consolidar uma política de habitação que contemplasse os interesses populares.

Foi nesse momento histórico que o Gajop assumiu institucionalmente a difícil temática da Segurança Pública como política de Direitos Humanos. Ressalte-se que até então não havia, no Brasil, quem se propusessem a trabalhar com essa questão. Em conseqüência do longo período ditatorial, que colocou pessoas em campos diametralmente opostos, o diálogo nesta área se apresentava revestido de muitas dificuldades. O direito à segurança e a justiça passou então a ser o foco de intervenção da entidade, no lugar do direito à moradia. E já em 1986 o Gajop participou ativamente do plano Mutirão Contra a Violência, projeto idealizado pelo Ministério da Justiça. Esse plano refletia uma nova concepção política, partindo de um governo não autoritário que chamava para si a tarefa de promover uma luta nacional contra a violência.

O projeto apresentado pela entidade ao Ministério contemplava três ações: Violência Zero, um programa radiofônico transmitido pela Rádio Tamandaré que debatia, informava e educava a população a respeito do problema da violência; Paz na Serra do Araripe, que tinha por objetivo implantar um núcleo de educação e assessoria jurídica popular no sertão do Araripe, região interiorana de Pernambuco; e Segurança e Participação Popular, para elaboração de vídeos e cartilhas sobre criminalidade e segurança.

Em 1987 o Gajop viveu uma grande experiência trabalhando no combate à violência contra crianças e adolescentes na comunidade da Ilha de Santana, em Olinda. Essa prática deu origem ao Projeto de Expansão da Experiência Comunitária Contra a Violência, viabilizado conjuntamente com o Centro de Cultura Luiz Freire, a Secretaria de Justiça do Estado e a Funabem. Destaque-se que a educação em Direitos Humanos sempre foi uma preocupação institucional dessa entidade. Nesse mesmo ano foi criado, com muito sucesso, um projeto de formação para estudantes de Direito, denominado “Direitos Humanos e Realidade Social”. Esse trabalho já refletia a concepção, inaugurada na época, de que os Direitos Humanos se constituem num todo indivisível, interdependente e inalienável.

A Assembléia Nacional Constituinte propiciou um amplo debate social. O movimento Constituinte Popular reunia-se, em Recife, na sede da Ação Católica Operária, hoje chamada Movimento dos Trabalhadores Cristãos, MTC, e este espaço político foi ocupado pelo Gajop com eficácia e competência. A entidade entendia que somente a pressão popular garantiria os direitos fundamentais do povo, na nova Carta Magna. Iniciou, então, o monitoramento do Sistema de Justiça e Segurança de Pernambuco, e assumiu o desafio institucional atuar de forma propositiva em políticas públicas na área de Segurança e Justiça e na perspectivas dos Direitos Humanos, contribuindo para controlar a criminalidade num quadro social e político marcado pela impunidade e pela banalização da violência.

A década de 90, no Brasil, foi marcada pela crise da polícia e pelo aumento da violência que levou a população a desacreditar na capacidade do Estado de garantir a tranqüilidade pública. O governo federal criou então o Programa Nacional de Direitos Humanos, um marco institucional na abertura do diálogo entre as polícias e as organizações não governamentais que lutam pelo direito à segurança. Daí despontou, em 1996, uma parceria entre o Gajop e o Comando da Polícia Militar de Pernambuco, para a criação do Programa Educação para Cidadania, que tinha como objetivo inicial qualificar e democratizar os serviços prestados pela polícia à população.

No ano 2000 teve início a ação educativa para o policial, que se expandiu para além das salas de aula e introduziu novas formas pedagógicas de interação polícia/comunidade. Em parceria com o Programa Governamental de Polícia Comunitária, o Gajop prestou assessoria aos Conselhos Comunitários de Defesa Social, capacitando representantes das comunidades para o exercício de suas funções constitucionais de controle social da política de segurança pública. A partir de 2002 passou a desenvolver ações político-educativas articuladas com as organizações comunitárias, formando a chamada Rede Solidária de Defesa Social, implementando uma abordagem integrada de defesa, garantia e promoção dos direitos humanos.

Finalmente, não podemos concluir essa apresentação sem tecer alguns comentários a respeito do Programa de Apoio e Proteção as Testemunhas, Vítimas e Familiares de Vítimas da Violência, popularmente conhecido pela sigla Provita. Esse programa, que tem o desiderato de ser uma política pública, teve inicio em 1995, quando o Gajop buscava contribuir para a redução dos elevados índices de impunidade. Fundamentado em sua larga experiência de assessoria jurídica em diversos casos criminais com envolvimento de grupos de extermínio, a organização apresentou ao governo de Pernambuco uma proposta para a criação desse programa.

Essa inédita proposição refletia as transformações atravessadas pelo País, com o retorno ao Estado Democrático de Direito, e estava em sintonia com o cenário internacional de fortalecimento da luta pelos Direitos Humanos após a Conferência das Nações Unidas, ocorrida em Viena, em 1993. Até então as testemunhas eram tratadas com total descaso pela legislação brasileira, e as vítimas só começaram a ser visíveis para o sistema judicial após o advento da lei 9099/95.

Atualmente, esse programa encontra-se implantado em vários estados da federação, entre os quais Acre, Amazonas, Bahia, Ceara, Espírito Santos, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Distrito Federal, São Paulo e Rio Grande do Sul. Existe ainda o Programa Federal de Proteção que atende os demais Estados e os réus colaboradores (testemunhas com envolvimento criminoso), através da Policia Federal.

Resta dizer que o Gajop é filiado ao Movimento Nacional de Direitos Humanos, hoje articulado em rede com mais de 400 entidades filiadas em todo o Brasil. Dele faz parte desde a sua fundação, em 1982, e tem participado de suas coordenações estadual e nacional. Também faz parte da Associação Nacional de Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, Anced; da Plataforma dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais Culturais e Ambientais, DHESCA; da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais, Abong; e do Conselho Nacional de Serviço de Assistência Social, CNAS. É reconhecido como entidade de interesse público por lei estadual e federal.

Em sua trajetória registra-se o recebimento de vários prêmios e homenagens, destacando-se a medalha Chico Mendes de resistência; a de Direitos Humanos Dom Hélder Câmara, concedida pela Câmara Municipal de Olinda; e o Prêmio Herbert de Souza, outorgado pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco. O projeto Justiça Cidadã, desenvolvido pelo Gajop e a Secretaria de Assuntos Jurídicos da Prefeitura do Recife, foi distinguido em dezembro de 2003 com o Prêmio Gestão Pública e Cidadania, iniciativa da Fundação Getúlio Vargas e Fundação Ford, com o apoio do BNDES. O Gajop foi ainda agraciado com o Prêmio Márcia Dangremont, pelo Conselho Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente de Pernambuco. Também recebeu o Prêmio Bem Eficiente, concedido em 1998, pela Kanitz e Associados, entidade que conta com o patrocínio de sete empresas brasileiras (Accor Brasil, Banco Dibens, DM9DDB, Fiormenich, Intermédica Saúde, Natura e TAM); e, finalmente, o Prêmio de Direitos Humanos, categoria organizações não governamentais, concedido pela Presidência da República, em primeira colocação.

Foi com muito entusiasmo que assumi essa incumbência de relatar a trajetória do Gajop, entidade que faz historia, e aproveito para prestar minhas homenagens a Chico Mendes, herói do povo brasileiro, presente agora e sempre.

TORTURA NUNCA MAIS.

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Marcelo Santa Cruz

Advogado, militante de Direitos Humanos e Coordenador Adjunto do Centro Dom Hélder Câmara de Estudos e Ação Social – CENDHEC.

Um comentário:

Luiz Otávio Ribas disse...

Olá
Gostei muito desta postagem!
Gostaria de saber se podemos reproduzí-la em nosso blogue.
Um abraço